Fortaleza se torna novo polo de samba do Nordeste
No Dia Nacional do Samba, sambistas cearenses avaliam expansão do ritmo na Capital e no País.
Seja no sábado à noite, numa tarde de domingo ou mesmo em plena segunda-feira, todo dia é dia de roda de samba em Fortaleza. Apesar de sempre ter sido presente na Capital, o gênero vive uma onda de fortalecimento nacional desde a pandemia, movimento que ampliou a projeção de sambistas na cena musical local e impulsionou a criação de novos espaços e eventos dedicados ao ritmo.
Além de casas de show privadas que se tornaram reduto boêmio dos fortalezenses nas últimas décadas, novos espaços privados e equipamentos culturais públicos passaram a receber com frequência, rodas de samba de artistas como Gabi Nunes, Dipas, Belinho da Silva e Theresa Rachel, Sambomja e Samba Kanjerê, entre outros que despontaram nos últimos anos.
Para Gabi Nunes, cantora há cerca de 15 anos e um dos nomes de maior circulação nas casas de show e eventos de samba da Capital atualmente, essa nova atenção concedida a um gênero musical tão genuinamente brasileiro é parte de um momento que se originou após o período de isolamento social, mas faz parte de um fenômeno muito próprio do samba: o vai-e-vem da valorização do ritmo, que nunca sai de cena, mas enfrenta fases de “vacas magras” e “vacas gordas” desde sempre.
Em Fortaleza, os anos 2010 foram prolíficos para o samba e para o pagode, também como parte de um movimento nacional. No fim da década, pré-pandemia, no entanto, houve uma enfraquecida e outros gêneros ofuscaram um pouco o brilho do ritmo, especialmente o forró, queridinho da população cearense, e o sertanejo.
“Eu acho que o samba sempre passou por esses ciclos”, comenta a artista. “A gente está nesse momento nesse ciclo ‘das vacas gordas’, digamos assim, que eu acho que é geral, muito por causa da pandemia em si. Quando a gente finalmente passou por esse período terrível, todo mundo queria se encontrar, todo mundo queria estar aglomerado, e a roda de samba possibilita isso”, pontua a artista, que também é idealizadora do projeto Gabi no Quintal.

“Dentre todos os gêneros musicais, a roda de samba é uma expressão do samba que é coletiva, é uma experiência coletiva. Você tá ali perto um do outro, batendo na palma da mão e cantando e querendo participar. Acho que veio também como um respiro tipo ‘poxa, estamos juntos de novo, vamos aqui celebrar’”, completa.
Um dos principais aspectos, afirma, é o formato. Enquanto em outros momentos o sucesso maior foi do pagode, hoje há um aumento significativo das rodas de samba, que saíram do eixo Rio-São Paulo para se tornar queridinhas dos cearenses.
Para Dipas, um ‘ponto crucial’ na renovação do gosto pelo samba pós-pandemia tem a ver com o consumo de música on-line e com o sucesso de novos artistas nesse modelo, a exemplo do grupo de pagode brasiliense Menos é Mais, que se tornou um fenômeno nacional nos últimos anos.
Outras mudanças têm a ver com quem faz e com quem consome o samba na Capital: de público e artistas majoritariamente brancos e, muitas vezes, voltados para elites, hoje o samba e o pagode cearenses são mais democráticos, atendendo a diferentes públicos – incluindo o mais “alternativo” – e protagonizado por mais mulheres, pessoas negras e periféricas.
“Após a pandemia já vinha um crescimento de grupos de pagode, mas um público diferente começou a consumir. Por exemplo, o meu público é um público que eu começo a entender como um público mais alternativo assim, sabe? A galera gosta do meu som porque eu também toco outras coisas além de pagode, toco músicas alternativas, umas MPBs”, comenta.
Para ele, a renovação do público passa também pela renovação dos artistas, já que hoje o artista se vende como persona, se comunicando também pelo estilo de se vestir, a posição política e outros aspectos. “Tudo isso influencia no consumo do momento”, aponta.
Por que Fortaleza?

O momento de expansão do samba cearense, especialmente na Capital, não tem uma explicação única: une tendências e persistência dos artistas, acompanha um movimento de renovação de interesse na cultura nacional e tem base na longa trajetória de grupos de samba raiz e baterias que formam a velha guarda da Cidade.
Apesar de ser difícil determinar o que dá conta desse fenômeno, a sambista Gabi Nunes também aposta em alguns aspectos específicos de Fortaleza como alavancadores. Um deles é a tradição da boemia e de ocupar as ruas da cidade com música.
“Para mim, o samba de Fortaleza tem a cara de um domingo de tarde, em que você vai, sai, almoça, toma uma cerveja. Eu acho que a gente tem muito essa questão de estar na rua, de tocar e de cantar, e isso tem muito a ver com samba”, afirma.
Outro ponto que influenciou o gosto da Capital pelo ritmo é a tradição do choro, gênero musical que caminha lado a lado com o samba. “A gente tem musicistas incríveis de choro, desde sempre. São gerações e gerações, e esses musicistas também estão no samba, né? São virtuosos, improvisam muito bem e tocam muito bem”, completa.
Para Dipas, dois outros aspectos musicais contribuem para o avanço do samba em diferentes frentes. O primeiro deles é a produção musical nas periferias, “onde o pagode pega fogo”. O segundo é a “herança” das baterias carnavalescas, muitas delas presentes na programação cultural da Capital ao longo do ano.

É o caso do Grêmio Recreativo Bloco Carnavalesco Unidos da Cachorra, que dá cor e som ao Pré-Carnaval de Fortaleza há 23 anos e passou a ser atração do Carnaval em 2025.
Com um começo bem usual aos blocos carnavalescos – um grupo de amigos que fazia a festa de maneira amadora e foi profissionalizando o trabalho ao longo dos anos –, a Cachorra é também responsável por criar um estilo de samba-enredo cearense, conforme o diretor-executivo Felipe Pontes.
“O samba aqui em Fortaleza tem tomado identidade própria. A gente tem trazido coisas, claro, de outras escolas, como do Rio de Janeiro e tudo – mas os nossos blocos têm trazido inovações de ritmo. Por exemplo, a gente traz reggae com samba, traz rock com samba, até sertanejo com samba a gente traz”, comenta.
A batida, portanto, torna-se única, original, o que tem ampliado o número de seguidores fiéis do bloco. “Isso tem trazido cada vez mais pessoas para perto, não só no Ciclo Carnavalesco, mas também para nossas quadras, pros nossos espaços de ensaio”, celebra Felipe, que acredita que a cultura de samba alimentada ao longo dos anos tornou-se “enraizada” após o crescimento pós-pandêmico do ritmo.
“Hoje a gente tem blocos espalhados por todo canto dessa cidade, e é isso é fruto de um trabalho coletivo, de algo que realmente aconteceu de um amor, de uma paixão pelo samba”, pontua o diretor. “A gente reconhece que é um ritmo nacional – nós somos nordestinos, somos cearenses, aqui temos o nosso forró e isso é maravilhoso, mas a nossa história permitiu que o samba entrasse somando a esses outros ritmos”.
“Renovação” traz eco de décadas passadas e nem sempre chega à autoralidade

Se hoje casas de show e eventos se consolidam a partir do samba, seja ele tradicional, pagode, samba-enredo ou um samba aliado à MPB, é possível elencar dois principais nomes como pioneiros nessa história: o Bar do Zé Bezerra, no Parque Araxá, e o Bar da Mocinha, no Meireles, ambos em funcionamento desde a década de 70.
Reverenciados pelos sambistas de diversas gerações da Cidade, os dois espaços também ganharam público renovado nos últimos anos, atraindo gerações mais jovens e o público “alternativo” que não costumava frequentar os sambas “raiz” da Capital.

Para o músico Italo da Mocinha – que está à frente do Pagode da Mocinha com o irmão desde o falecimento da avó, idealizadora do icônico reduto boêmio, e do pai, que havia assumido os negócios da mãe –, esse movimento é também eco da tradição carnavalesca de samba da Cidade.
Um marco importante para a Mocinha e a cena local, conta, foi a oficialização do espaço como polo oficial do Ciclo Carnavalesco de Fortaleza, feita durante a gestão de Luizianne Lins (PT). “De bar de samba virou referência de Pré-Carnaval e Carnaval”, comenta.

Até hoje, centenas de pessoas se amontoam em torno do bar para curtir um samba raiz. O dia mais cheio é o domingo, quando a festa começa à tarde e segue durante à noite com o Grupo DTF, do qual Italo faz parte. Como músico, ele tem visto o aumento do interesse pelo samba para além dos negócios da família.
“Antigamente, era só a Mocinha e o Zé Bezerra. De uns dez anos pra cá, muita coisa aconteceu. São várias casas de show, várias casas de samba e casas que tocam samba e outros ritmos. O ritmo ficou muito forte na cidade, até por conta da internet”, explica.
No entanto, a tradição do samba raiz, em parte responsável pelo novo boom do ritmo, também pode afetar a nova geração de artistas negativamente. É que, segundo Dipas, o interesse renovado não chegou do mesmo modo a grupos que tocam samba autoral, genuinamente cearense.
Para o artista, que hoje segue carreira solo, mas fez sucesso como membro do grupo Mesura nos anos 2010, há alguns anos o público era mais aberto ao que era novo. Hoje, boa parte quer mais do mesmo. “Acho que isso está muito relacionado à quantidade de informação que a gente recebe. A gente é bombardeado de informação. Então, para uma pessoa ficar na tua música, ela tem que se interessar muito”, comenta.
“Ao mesmo tempo, essa possibilidade de estar lançando música coloca a gente numa briga um pouco mais honesta, assim, entre aspas, com artistas que estão consolidados, porque hoje eu vejo que os artistas grandes passam dificuldades muito parecidas com a gente que está iniciando”, completa.
Profissionalização e representatividade avançam, mas não o suficiente
A necessidade de se diferenciar em um cenário com consumo de música segmentado e pautado por algoritmos inclui uma maior importância de profissionalização dos artistas, afirma Gabi Nunes.“A roda de samba é muito espontânea, muitas vezes, a gente está ali se divertindo, mas existe ali um conjunto de saberes muito sofisticados, e é um trabalho. Você segurar uma roda de samba não é fácil, não é qualquer cantor e qualquer cantora que consegue”, destaca.
“Então, acho que essa questão da valorização de cachê e tudo precisa passar muito pela nossa profissionalização. Já que a opinião média das pessoas é de que a gente está fazendo aquilo ali no ‘oba oba’, vamos mostrar que é o seguinte: aqui eu trabalho desse jeito, meus equipamentos são esses, é assim assado”, completa.
Para Dipas, apesar desse desafio, hoje há mais oportunidades para quem deseja começar no ritmo. “Quando eu comecei a tocar, era muito difícil. Você ia para mil rodas de samba assim para ficar olhando”, brinca. “Hoje em dia, conheço meninos assim, pivetes, já tocando, ganhando uma graninha ali, já movimentando uma economia criativa”.
Além de mais grupos surgirem, Gabi e Dipas destacam o aumento da representatividade de mulheres, pessoas negras e LGBTQIAP+ no samba cearense, a exemplo de projetos como o Samba da Barbada, tocado pela drag queen Mulher Barbada, e o Samba Kanjerê, especializado em samba de terreiro.

A presença negra, tão fundamental no samba e pouco praticada na Capital há algumas décadas, é um destaque da nova geração de sambistas, destaca Dipas. Mas, assim como a nova onda de interesse pelo samba, ela não vem do nada, mas de avanços sociais mais complexos que chegam até à música.
“Existe um empoderamento do povo preto que, com certeza, é reflexo de um novo momento. Um momento que foi conquistado, na verdade, a, a partir de luta do movimento negro, de reflexões, de posicionamento dos artistas”, completa.
Um impasse ainda colocado pelos artistas da cena local é a presença de musicistas mulheres nas rodas de samba. Para Gabi, houve avanços, mas é preciso que haja um movimento coletivo para que haja mais presença feminina nas rodas, para além dos microfones.
“Venho tentado puxar para perto de mim essas musicistas e outras cantoras, e acho que isso vai abrindo um pouquinho de espaço, sabe? Mas ainda não é o que deveria. Acho que, na minha opinião, os homens que fazem samba também deveriam ter essa preocupação”, pontua a sambista.
O momento de avançar, completa, é agora. “Espero que essa fase do samba perdure, que a gente consiga aproveitar essa boa onda, essa maré cheia, para poder plantar coisas que se sustentem a longo prazo. Vejo que a gente melhorou muito, mas eu acho que ainda falta um bocado”, conclui.
8 lugares para curtir um samba em Fortaleza
Abaeté Boteco
Onde: R. Barão de Aracati, 2899 – Joaquim Távora
Mais informações: @abaeteboteco
Ajeum de Oyá
Onde: Av. da Universidade, 2327 – Benfica
Mais informações: @ajeum.deoya
Bar da Mocinha
Onde: Rua Padre Climério, 140 – Meireles
Mais informações: @bardamocinha
Bar do Zé Bezerra
Onde: Rua Dom Manuel de Medeiros, 71 – Parque Araxá
Mais informações: @bardozebezerra
Casa Teresa & Jorge
Onde: R. dos Tabajaras, 368 – Praia de Iracema
Mais informações: @casateresaejorge
Moto Libre Bar
Onde: Av. Monsenhor Tabosa, 299 – Praia de Iracema
Mais informações: @motolibrebar
Quintal do Samba
Onde: R. Paulino Nogueira, 91 – Benfica
Mais informações: @quintaldosambabr
Vila Camaleão
Onde: Av. Barão de Studart, 671 – Meireles
Mais informações: @vilacamaleao
