Maternidade atípica: histórias de amor de quem também tem o direito de sorrir
Veja histórias de mães que transformam o amor em motivação na luta pelos direitos dos filhos
Ao redor do mundo, as histórias de maternidade têm início de maneira quase universal, seguindo frequentemente três etapas: a expectativa, a descoberta e a alegria da chegada. Ser mãe muitas vezes é descrito como um sentimento singular, um clube secreto reservado àqueles que vivenciam a experiência, onde o verdadeiro significado do amor incondicional se revela, livre de limites e barreiras.
Contudo, a realidade confronta cada mãe com um contexto único. Muitas vezes, a quebra das expectativas acontece com um filho que, aos olhos dos preconceitos sociais, não se encaixa nas normas convencionais. É nesse momento que o Dia das Mães se torna especialmente significativo, oferecendo uma oportunidade de honrar e reconhecer o cuidado e o amor dessas mães, independente dos desafios que enfrentam.
As mulheres que cuidam de filhos com deficiências, transtornos ou síndromes raras, são conhecidas como mães atípicas e formam um grupo frequentemente negligenciado nas discussões sobre os direitos maternos. No entanto, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 2022, o Brasil tem mais de 18 milhões de pessoas com 2 anos ou mais que possuem algum tipo de deficiência. Por trás desses números, estão as vidas de mães cujo cotidiano mudou de forma definitiva com a chegada de seus filhos.
Roberta acorda na madrugada e viaja mais de 120 KM para chegar até sede da AACD, no Recife. Foto: Melissa Fernandes / Folha de Pernambuco.
Roberta Araújo é uma das vozes que conta a história de uma longa trajetória de dedicação. São mais de 120 quilômetros que separam o sítio onde mora, na região rural do município de Riacho das Almas, no Agreste de Pernambuco, da capital, Recife, onde realiza os tratamentos da filha Izabella, de apenas três anos, na sede da Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD).
Por duas vezes na semana, Roberta sai de casa por volta das 1h20 da madrugada para chegar a tempo aos atendimentos da filha.
“A partir do momento que virei mãe, nada mais importou. Posso estar doente e cansada, mas tudo isso é pequeno perto da necessidade da minha filha. Se ela está bem, eu estou bem”.
A gravidez de Izabella foi planejada e era o grande sonho da vida de Roberta após uma gestação interrompida. “Tentamos por um ano e quando já havia desistido, descobri que estava grávida de três meses”, explica a mãe.
Sem nenhum preparo para um futuro diferente do que imaginava, Roberta teve complicações no parto que resultaram no prolapso do cordão umbilical e a falta de oxigenação da bebê. Foram 25 dias no hospital, sendo cinco destes com a filha em coma induzido. As sequelas provocaram atrasos na fala e problemas na coordenação motora da criança.
“O sonho de ser mãe não se torna menos especial porque a criança tem uma necessidade, isso não diminui ninguém como mãe. Quando eu choro, não é por estar triste por ter uma filha com deficiência, ou pelas lutas que enfrento. Nada disso, eu choro emocionada de gratidão, porque a minha filha é uma vitória na minha vida”.
Na ACCD, além do tratamento para a filha, Roberta encontrou também um espaço de acolhimento emocional. Ao lado da equipe profissional de terapeutas do espaço, conseguiu enxergar as dificuldades enfrentadas por uma nova ótica.
“No começo, parecia que eu não era parte do mundo, mas quando cheguei aqui, me reencontrei e fui acolhida por todos para conseguir seguir em frente”.
REDES DE APOIO
A compreensão de que o maternar atípico também pode proporcionar realizações e sonhos não é o primeiro pensamento de muitas dessas mães. Para Roberta Pinheiro, psicóloga da AACD, é preciso trabalhar a ideia de que o filho ideal nunca será o filho real, até mesmo em maternidades típicas.
“Quando a negação passa para a fase da compreensão, as mães podem aprender com os seus filhos e alinhar as expectativas”, destaca.
Nesse processo, as redes de apoio e o contato com outras mulheres que enfrentam os mesmos desafios e comemoram as mesmas alegrias é de extrema importância. Foi com isso em mente que Pollyana Dias, mais conhecida como Polly da AMAR, fundou a Aliança De Mães Famílias Raras (AMAR), instituição incubada pelo Porto Social, em parceria com o projeto Transforma Brasil.
Pollyana abandonou o trabalho para cuidar de Pedro e da AMAR integralmente. Foto: Bia Chaves / Cortesia.
Mãe de Pedro, de 26 anos, diagnosticado aos oito com Cri Du Chat, doença rara que afeta um em cada 50 mil nascimentos, Polly percorreu os 230 quilômetros que separam Garanhuns, onde morava com a família, até o Recife, para onde se mudou permanentemente em busca de tratamento para o filho. Na capital, conseguiu o diagnóstico, mas não encontrou a aceitação que tanto buscava.
“Pedro nunca ficou muito tempo em uma escola, sempre era convidado a sair da instituição. Um dia, uma professora fez uma homenagem para todas as crianças da turma e deixou ele de fora, aquilo me provocou um trauma enorme”.
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Sem trabalhar e com dedicação integral ao filho, ela percebeu que as políticas públicas mais básicas da atenção primária não contemplavam a sua família. Quando existiam, na precariedade, estavam sempre direcionadas ao filho e nunca à figura do cuidador com laços afetivos.
“Pedro me motivou a enxergar que o mundo é para todos e que todo mundo tem que ser bem recebido em todos os espaços”, ressalta. “A AMAR surgiu para que outras mães não passem pela descriminação e rejeição que sofri”.
Pedro foi diagnosticado aos oito anos com a síndrome de Cri Du Chat. Foto: Bia Chaves / Cortesia.
Na instituição, além do acolhimento, uma equipe de profissionais recebe mães e familiares para implementar o treinamento parental, que apresenta ferramentas psicológicas para lidar com os momentos difíceis que envolvem uma criação atípica.
Uma delas é a reflexão e o autocuidado trabalhados nas sessões de arteterapia, elaboradas com o propósito de estimular a reconexão dessas mães com suas identidades para além da maternidade. Para Roseane Dias, arteterapeuta da AMAR, é preciso que as mães enxerguem suas necessidades também como uma prioridade importante.
“A gente faz esse trabalho de conscientização para que elas entendam que, para que possam cuidar dos filhos, primeiro precisam cuidar”, avalia.
FORÇA PARA LUTAR
A história de Polly não é a única. Também no Recife, Gleyse Cavalcanti se viu perdida quando recebeu o diagnóstico de microcefalia da filha Maria Giovanna, hoje com oito anos. Durante a gestação, em 2015, ela contraiu o zika vírus achando que tudo não passaria de um episódio incômodo com sintomas de uma virose. Gleyse, no entanto, fez parte dos primeiros casos registrados em Pernambuco que marcaram a descoberta da microcefalia nos bebês gestados por mulheres infectadas pelo zika.
“Descobri tudo no quinto mês da gestação, eu ainda não sabia o que era [a microcefalia] e dessa notícia até o nascimento foram dias angustiantes”, desabafa.
A partir desse momento, ela abandonou o emprego para se dedicar integralmente à filha. O sonho de ser mãe de uma menina se transformou na luta por direitos e na alegria por cada avanço que conquistava ao lado de Giovanna.
Gleyse luta por apoio e tratamento para a filha Maria Giovanna. Foto: Ricardo Fernandes/ Folha de Pernambuco.
“Ela nasceu no boom da microcefalia e corri muito atrás do diagnóstico. Mesmo quando estava cansada, continuava com coragem para lutar por ela. O que me motiva é a gratidão de ter a minha filha, do jeitinho que ela é, sou muito feliz por isso”.
Mesmo com o diagnóstico, Gleyse segue lutando para que a filha tenha acesso às terapias de apoio necessárias para uma melhora da qualidade de vida.
“As sessões de terapia são de apenas 30 minutos para cada criança, a cada 15 dias, isso não dá conta de ajudar ninguém. Além disso, sofro com a demora das filas de espera para marcar exames. O sistema de saúde é uma grande dificuldade”.
Gleyse dedica o tempo entre os cuidados com a filha e a Vice-presidência da UMA. Foto: Ricardo Fernandes/ Folha de Pernambuco.
A jornada em busca de tratamentos colocou Gleyse no lugar certo e na hora certa, durante a fila para um exame no Hospital Oswaldo Cruz, localizado no centro do Recife, ela conheceu Germana Soares, outra mãe que vivenciava a mesma rotina. Juntas, as duas se conectaram com mais mães atípicas em um grupo de WhatsApp para conversar e trocar ajuda. Hoje, o grupo se transformou na União Mães De Anjos Em Pernambuco (UMA), uma instituição que oferece apoio e acolhimento para centenas de mães de crianças com microcefalia no estado.
“Costumo dizer que minha filha não nasceu de mim, eu que nasci dela, porque me refiz outra pessoa e conheci outras mães e outras histórias. É por todas nós que eu luto”.