Menino terá sobrenome de dois pais em certidão após Justiça reconhecer paternidade socioafetiva
A sentença do juiz autorizando a inclusão do sobrenome de Adilson na certidão de Ângelo foi proferida no fim de fevereiro
Aos 11 anos, o pequeno Ângelo Ravel vai passar a se chamar Ângelo Ravel Nunes de Sousa Moraes e terá, oficialmente, um segundo pai. Em 2021, ele escreveu uma carta relatando o desejo de ter o sobrenome do padrasto e pedindo a mudança à juíza Kathleen Nicola Kilian, titular da 1ª Vara da Comarca de Quixeramobim. Em seguida, a enviou a uma estação de rádio da cidade. Quase três anos depois, a Justiça reconheceu o vínculo socioafetivo entre o menino o agricultor José Adilton.
Agora, Ângelo terá o nome de dois pais na certidão de nascimento: do biológico, com quem não tem mais contato, e do pai afetivo. Além de ganhar o sobrenome Moraes, o menino passa a ter todos os direitos de herdeiro legítimo de José Adilton, com quem convive desde que tinha 4 anos.
O homem, por sua vez, passa a ter os direitos e as obrigações de pai. “Agora, não vai encontrar óbice em matricular, em representar (o filho) em entidades públicas, hospitais, nas instituições de ensino. Passa a ter todo o direito e a legitimidade”, explica o defensor público Jefferson Leite, que atuou no caso.
A família vive no assentamento Santa Elisa, na comunidade Rancho, no sertão de Quixeramobim, e o agricultor é companheiro da mãe de Ângelo desde 2017, após o casal se conhecer pela internet. Foi após o menino ver fotos de uma ação social em que a juíza entregava cestas básicas para famílias carentes da região que ele fez a carta endereçada à magistrada.
A resposta a Ângelo também veio em forma de carta. Conforme o Diário do Nordeste noticiou na época, a juíza informou ao pequeno o horário em que a família seria recebida na Defensoria Pública do Ceará (DPCE) para que o pedido fosse formalizado. A Defensoria presta assistência jurídica à família desde o início do processo, em junho de 2021, e a sentença do juiz autorizando a inclusão do sobrenome de Adilson na certidão de Ângelo foi proferida no fim de fevereiro de 2024.
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Na decisão, o juiz Rogaciano Bezerra Leite Neto, da 2ª Vara de Quixeramobim, aponta a “relação íntima de afeto construída ao longo de considerável tempo de convivência familiar” e cita que é o agricultor quem presta “assistência material e afetiva à criança”. “Além do afeto, há o desejo de ambos – José Adilton e Ângelo – de ver reconhecida a paternidade socioafetiva, a fim de formalizar a situação já vivenciada no seio familiar”, continua.
Com a decisão judicial favorável e averbada em cartório de registro civil do município, uma nova certidão de nascimento será emitida. “Sempre foi meu sonho ter o sobrenome dele no meu documento porque pai é o que cria. E ele é meu pai. Então, isso estar acontecendo é uma alegria grande. Eu tô me sentindo feliz. Muito feliz”, afirma o garoto.
Para o pai de Ângelo — agora oficialmente — , esse reconhecimento “era uma coisa que ninguém acreditava que podia acontecer”. “Mas aconteceu. E eu tô muito feliz” (…) O coração fica mais tranquilo. Agora é dar entrada no novo documento”, celebra.
A mãe também comemorou a conquista da família, que ainda conta com o caçula Moraes Neto, filho de Teresa com Adilton. “Eu ainda nem acredito que deu certo! Nunca pensei que existisse essa maneira de resolver [tendo dois pais na certidão]. Quando o Ângelo me pedia pra ter o sobrenome do Adilton, eu dizia que quando ele fosse maior de idade a gente iria atrás disso. Então, fiquei feliz demais com o resultado! Ele conseguiu realizar um sonho”, disse.
PATERNIDADE SOCIOAFETIVA
A inclusão do sobrenome de Adilton poderia ocorrer por dois meios: adoção ou reconhecimento de paternidade socioafetiva. Segundo o defensor público Jefferson Leite, ainda não existe uma lei no Brasil que regulamente essa relação socioafetiva, materna ou paterna. “Há um esboço de projeto de lei que tramita no Congresso Nacional, mas também sem qualquer previsão de aprovação”, afirma.
A relação socioafetiva de pai e filho entre Ângelo e Adilton foi relatada por diversas pessoas ouvidas durante o processo e também foi reforçada em parecer favorável do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE) ao reconhecimento do vínculo paternal. O judiciário ainda pediu que esse vínculo fosse endossado por um laudo de uma assistente social da Prefeitura de Quixeramobim, que visitou a família, conversou com as partes e entrevistou testemunhas.
É importante registrar que não fica consignado, na certidão de nascimento da criança, nenhuma referência à origem dessa paternidade. (…) A Constituição veda qualquer discriminação sobre a origem dessa filiação. Então, pode ser uma filiação socioafetiva, uma filiação adotiva ou uma filiação biológica. Todas elas têm iguais direitos e deveres.
JEFFERSON LEITE
Defensor público
O defensor público também explica que foi determinada a citação do pai biológico de Ângelo, que não foi localizado nas primeiras diligências. Após alguns meses, o genitor foi localizado e teve ciência desse processo.
Ainda conforme Jefferson Leite, qualquer pessoa pode solicitar o reconhecimento socioafetivo da relação materna ou paterna. Para isso, é preciso que o vínculo fique bem caracterizado e que sejam enviadas provas de que o exercício desses direitos e dessas responsabilidades já é realizado na prática.
“Deve-se juntar documentos relativos, por exemplo, ao acompanhamento escolar, a acompanhamento, acompanhamentos da saúde da criança ou adolescente, fotos que demonstram que essa relação é longa. Também outros documentos que demonstram que eles moram há muito tempo juntos e já exercem na prática, de fato, essas posições jurídicas de pai, de filho, de mãe”, explica.