Como a arte e a memória podem ajudar um bairro a nascer em Fortaleza
O açude. O campo do Coritiba. A sede do Conselho Nova Vida. A antiga escola Lions Clube. A Igreja de Santo Antônio de Pádua. As creches e escolas. As casas de quem mora por lá. Estes são alguns dos espaços citados por moradores como marcos do Santa Filomena.
Nascida a partir de movimentos em prol da luta por moradia digna ocorridos desde o fim dos anos 1980, a atual comunidade do Grande Jangurussu tem sido palco de mobilizações recentes de habitantes e lideranças pelo reconhecimento do local como um bairro de Fortaleza.
Central para esta movimentação, a história do Santa Filomena é destacada por meio da arte e da memória com acriação do Acervo e Museu Uma Filomena (AMUF), idealizado pelo cineasta, fotógrafo e pesquisador territorial Leo Silva, 30 anos, nascido e criado ali.
O projeto visa contar, a partir de fotografias, jornais, documentos e registros históricos, o percurso do território desde as primeiras ocupações, passando pelas conquistas concretizadas por força popular e chegando às atuais demandas.
Percurso do “Uma Filomena”
“Nossa memória histórica das lutas é fundamental. Depois, é contar e recontar. Esse espaço é fundamental pra essa memória e (para saber) como continuar”. Quem atesta ao Verso, que visitou o Santa Filomena no final de outubro, é Beth Silva. Com 66 anos, ela é educadora popular e mobilizadora social.
Os primeiros “passos” do território foram ligados às lutas por habitação, que marcaram diferentes regiões periféricas de Fortaleza entre os anos 1980 e 1990, e incluíram diferentes ocupações de terra.
“Santa Filomena nasce e se desenvolve dentro de uma luta por moradia. O povo começou a fazer o processo de ocupação na base da resistência, da luta, do grito. Foi daí que ele (o território) passa a se desenvolver enquanto comunidade. Hoje, a meta é se transformar em bairro”, resume Jardel Silvestre, presidente da ONG Olhando Pra Frente.
A movimentação, que contava com apoio de figuras religiosas como Dom Aloísio Lorscheider — Arcebispo de Fortaleza de 1973 a 1995 —, passou a se dar antes mesmo dele nascer.

“Foi desde 1986, 1987, período que padre Chico (Moser) e padre Luiz (Fornasier, que atuaram como missionários em Fortaleza entre o final dos anos 1980 e 2004) estavam aqui nessa região que começaram muitas lutas das comunidades”, contextualiza Beth.
Ela — que ao longo das décadas trabalhou junto à Pastoral do Solo Urbano, Pastoral do Menor, rádios comunitárias e atua na Associação de Mulheres em Movimento — é uma das mais de 60 pessoas que vivem há décadas no território e foram entrevistadas por Leo para o projeto do AMUF.

A partir de pesquisas próprias e apoios das pessoas depoentes, ele já chegou a mais de 10 mil arquivos entre fotos, vídeos, matérias jornalísticas e outros itens de memória.
Atualmente, a equipe do AMUF conta com pesquisadoras comunitárias, articuladores, urbanista, fotógrafo, técnico de áudio, digitalizadores de acervo, tradutora de Libras, designer e expografista.
Antes de se estruturar enquanto acervo e museu, o projeto Uma Filomena surgiu em 2020 como um jornal comunitário. Àquela altura, já faziam cinco anos desde que o jovem fotógrafo havia começado a voltar a câmera para o próprio território.
Após uma primeira edição da publicação, veio a pandemia e a proposta foi abreviada. Até aquela altura, Leo se deu conta do grande acervo de fotos próprias que havia construído desde 2015.

Com o tempo, foi também preservando fotografias, vídeos e documentos variados de moradores da região. “A minha visão fotográfica e de cinema tava caminhando para um processo de história memorial do Santa Filomena”, resume ele.
“(Anteriormente) já tinha algumas entrevistas, comecei a voltar pra elas e ver que já tinha muito desses moradores”, explica. “Fui entendendo e tendo diálogos mais estratégicos sobre território e memória. Entendi que o que eu tinha não era material para ficar parado comigo, precisava circular de outras formas”, avança.
Um acervo em movimento
A partir deste acervo construído, o artista realizou duas exposições em instituições: “Um olhar sobre a comunidade”, que ficou em cartaz no Museu de Arte Contemporânea do Ceará, no Dragão do Mar, em 2023, e “Da terra batida ao gramado”, exposta no Museu Arena Castelão em 2024.
No mesmo ano, houve a inauguração doespaço expositivo numa parada de ônibus na rua Nunes Feijó, uma das principais vias do território, com a mostra de fotografias “É sobre a cidade, mas também é sobre Filomena”. Neste ano, “Da terra batida ao gramado” chegou ao local.
As realizações de mostras rotativas no espaço público foram sendo possíveis a partir de apoios de parceiros do território, políticas públicas e outros. No mesmo período, o projeto do AMUF se fortaleceu com a conquista de um edital da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB) voltado a museus e bibliotecas comunitárias.
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“Como se conta a história sobre o nascimento de um bairro?”
Além do processo de digitalização, organização e construção do acervo, os primeiros passos oficiais do AMUF incluem a produção e o futuro lançamento do livro “Como se conta a história sobre o nascimento de um bairro?”.
A obra, que deve ser lançada nos primeiros meses de 2026, vai mesclar visões pessoais de Leo a partir da pesquisa de mais de 10 anos com os relatos e visões dos moradores do Santa Filomena sobre a própria história e território.
Entre eles, figuras como Dona Penha, Lurdinha, Miguel e Gigi — pessoas que, como Leo reforça, estiveram na “na linha de frente” na atuação dos movimentos iniciais por moradia na região.
“Alguns moradores já falavam que eu era uma das pessoas que tava divulgando o Filomena com outros olhares. Dessa vez, a gente quer olhares que não sejam só os meus, mas um olhar em coletividade”Leo Silva
pesquisador territorial e idealizador do AMUF
O nome “Santa Filomena”, inclusive, surgiu por proposta de Dona Penha, “uma senhora também de muita luta”, como define Beth.
Pesquisa histórica do AMUF mostra que, a partir de 1989, o movimento popular local começou a se articular em entidades como a Associação de Moradores União Popular e Associação Sociedade Comunitária de Habitação Popular do Bairro Jangurussu.
Maria da Penha Lima, na época das movimentações, fazia sozinha a novena de Santa Filomena e visitava as casas, mobilizando articulações em prol da habitação.

Pela atuação da moradora, o território passou a ser reconhecido por este nome.Data de 1992 a criação da Associação Comunitária do Parque Santa Filomena.
A intenção é somar memórias de lideranças com atuação mais política, reminiscências do cotidiano de moradores e a costura de Leo no texto, valorizando as histórias de quem viveu e vive cada passo de luta e conquista do Santa Filomena.
Protagonismo da comunidade
Um dos parceiros e mobilizadores não só do projeto do AMUF, mas também da demanda pelo reconhecimento como bairro, é Jardel Silvestre.
Aos 37 anos, ele se apresenta como “nativo do Santa Filomena”. A ONG Olhando Pra Frente, criada por ele em 2019, atua por diversas demandas da região — da chegada da Areninha Santa Filomena, no antigo Campo do Coritiba, e construção de praça no local ao saneamento básico.
É em uma sala da sede da organização que os trabalhos presenciais do acervo têm se dado atualmente. Há a intenção de, futuramente, o AMUF ter prédio próprio, fixando um espaço de exposições rotativas e promovendo trabalhos ligados ao cinema e à fotografia.

Entre pontos de ação futuros, o AMUF pretende ainda construir um plano museológico — documento que guia ações de uma instituição do tipo — e promover visitas guiadas a espaços significativos do território. Outra ação, já em curso, é a Escola de Cinema e Fotografia Antônio Formiga, que está com inscrições abertas.
“Quando o Leo trouxe a ideia do museu, de contar a história do Santa Filomena, recebi com a maior alegria e entusiasmo, porque eu vi ali a oportunidade dos moradores narrarem as próprias histórias”, aponta.
“Quando o Leo traz esse projeto do museu na ideia de que os moradores pudessem contar a história do Santa Filomena, a gente não só dá o mérito aos reais protagonistas, mas também tem uma história contada por quem vivenciou cada detalhe”Jardel Silvestre
presidente da ONG Olhando Pra Frente
As entrevistas feitas com moradores antigos, na visão de Jardel, ajudaram a construir um “Santa Filomena por uma ótica totalmente diferenciada e tirar do anonimato pessoas que tem um momento de coisa para falar”.

“O contraponto da memória é o esquecimento”
Um dos sonhos de quem vive por lá, por exemplo, passa por poder renomear uma das escolas municipais presentes no território, a EMEIF Jornalista José Blanchard Girão da Silva, com o nome de uma moradora especial.
“Nós temos uma professora chamada Verônica Viana Martins, que começou o trabalho de educação aqui no Santa Filomena debaixo de uma mangueira, lá nos anos 1980, que poderia dar nome à escola”, defende Jardel.
“Quando a gente traz a memória da dona Penha, da Verônica e de outros moradores que estão vivos, essa é a maior importância do que estamos fazendo hoje. Nossa ideia não é só um resgate memorial, mas também homenagear essas pessoas e quem sabe, futuramente, a gente não mude o nome das escolas para colocar o nome de pessoas daqui”Leo Silva
pesquisador territorial e idealizador do AMUF
Todo o trabalho e as ações consequentes voltadas à memória são ressaltados por José Borzacchiello da Silva — professor titular e emérito de Geografia da Universidade Federal do Ceará e especialista em Geografia Urbana — como elemento central para um processo de reconhecimento, seja externo ou interno.
“Ela (a memória) é tudo. Ela é que vai dar o próprio sentido da formação do território”, resume. “O contraponto da memória é o esquecimento. O que é memorizado é o que sustenta a nossa vida. É importante estar falando desses locais”, segue o professor.

Em diálogo com o especialista, Jardel ressalta a importância da salvaguarda e preservação da história do Santa Filomena.
“É uma história tão rica que precisa ser exposta, se tornar museu de fato, para que as pessoas possam saber quem foram as figuras importantes, quem lutou para que hoje a gente tenha um bairro estruturado — não estamos ainda nesse patamar, mas estamos construindo. No dia que a gente chegar lá, é importante que as pessoas saibam como tudo começou”Jardel Silvestre
presidente da ONG Olhando Pra Frente
“Todas essas memórias, a partir do momento que são registradas, colocadas em museu, transformadas em livro, nada mais são do que um convite aos moradores para que possam mergulhar na própria história do bairro que moram e conhecer um pouco das raízes, cada luta, cada narrativa”, sustenta.
Por que Santa Filomena quer ser bairro?
Mas o que é um bairro? De maneira sucinta, Borzacchiello atesta: “É uma unidade territorial de identidade”. Escala intermediária entre a cidade e a rua, ele é marcado por “esse caráter identitário porque é um espaço de convívio e de socialização”.
Borzacchiello destaca que um dado relevante para esse processo é o “autorreconhecimento”. “É ela se autoperceber como uma unidade diferenciada do entorno. Ela não nega o entorno, mas trabalha pela sua identidade”, resume.
“O bairro vai além da função logística. (Os bairros) são palcos de encontros”José Borzacchiello da Silva
professor titular e emérito de Geografia da UFC

Na prática, o professor e geógrafo aponta o “sentimento de pertença” como também essencial para uma movimentação como essa. “As pessoas se sentirem parte, diferenciadas do entorno, pode garantir unidade”, afirma.
“A maior motivação (da busca pelo reconhecimento enquanto bairro) é quando a gente olha (contas de) água e luz, a fatura do cartão, e está ‘Jangurussu’. Jangurussu é um mundo. A gente se identifica como morador do Santa Filomena”, atesta Jardel.
No levantamento feito por Leo e pela equipe do acervo e museu — que buscou dados sobre cada bloco do territórioem termos de número de moradores, situação de habitação e outros pontos —, o entendimento era cristalino: “Eram histórias que nós entendemos que não estão no Jangurussu. É Santa Filomena”.
“Claro que ainda (o Santa Filomena) vai fazer parte do Grande Jangurussu, mas com as próprias pautas — o que eu acho que é a parte principal, para poder pautar (de maneira) direcionada pro território”Leo Silva
pesquisador territorial e idealizador do AMUF
São justamente essas “próprias pautas” — por mais creches, escolas, espaços de cultura, transporte público e outras demandas de cidadania — que movem os moradores.
A construção do território em si já foi pautada em lutas, como reforça Beth. “É muito importante para nós a memória das lutas, porque melhorou muito. Hoje tem posto de saúde, escolas. Não tinha linha de transporte, foi também luta”, descreve.
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Ainda na época da luta por habitação, os moradores se reuniam para construir as casas, tanto as próprias quanto as dos vizinhos. “Muitas famílias se envolveram nessa luta, faziam sopão no mutirão construindo as casas. Até ruas a gente abriu”, lembra ela.
“Como criança na época, a lembrança que tenho também é de um conjunto habitacional que foi construído no regime de mutirão. A minha mãe e o meu pai trabalhavam lá o dia todo, ele (ia também) no final de semana”, soma Jardel.

“Precisa ser reconhecido como bairro e ter todas as condições de um bairro, até para melhorar mais. Algumas coisas vêm para outro canto e não chegam (aqui). Nesse sentido, vai ser muito bom. Definir os limites, o que tem, o que não tem, como melhorar, o que precisa, como atender a demanda da população do bairro” Beth Silva
educadora popular
Apesar das conquistas, “hoje poderia ser bem melhor”, diz Beth, que acrescenta: “Tem muitas lutas ainda pela frente, inclusive de moradia”. Neste sentido, “é importante demais oficializar o bairro”, segue a educadora popular.
O que é preciso para um território se tornar bairro?
O trabalho de memória ajuda na busca por esse reconhecimento, mas deve vir com uma série de outras ações e articulações, inclusive políticas e junto a entes públicos.
“O museu acaba sendo um estudo para que, quando a gente for pressionar os poderes públicos, possa mostrar que tem uma história, e essa história é a de um bairro. Nós temos um nível populacional específico, a gente tem uma história específica, temos pautas específicas e precisamos de mais”Leo Silva
pesquisador territorial e idealizador do AMUF
Borzacchiello cita, por exemplo, outro trabalho relevante para este reconhecimento: a criação dos chamados mapas mentais.
“O que eles estão pleiteando é reconhecimento e diferenciação socioterritorial”, aponta. Para tanto, é preciso entender quais são as diferentes visões dos moradores acerca da extensão de determinado território.
Em termos simples, os mapas representam o entendimento dos próprios moradores de quais são os limites e a área de uma localidade.
“É mapear a área para poder ter elementos: Onde é o campinho de futebol? Onde pessoas se reúnem? O espaço da paquera, o espaço da festa? Esses espaços têm que ser mapeados”José Borzacchiello da Silva
professor titular e emérito de Geografia da UFC
Este é um esforço que já foi feito no Santa Filomena. Nas entrevistas com moradores, a equipe do AMUF foi angariando as visões deles sobre a área do território, até chegar a mapas representativos dessa diversidade de olhares.
Entre festas e eventos já marcantes do território, há o tradicional arraiá do Santa Filomena. “Desde a época (das mobilizações), sempre o povo gostou. E continua, né? As comidas típicas, quadrilhas, essas coisas assim. Todo ano a gente faz e é um chamariz. É (preciso) manter esses espaços culturais, de animação”, defende Beth.
Outro exemplo é o Favela Fest, evento promovido no escopo da Olhando Pra Frente. “É uma festa que junta mais de 15.000 pessoas”, informa Jardel.

O movimento que busca o reconhecimento do Santa Filomena como bairro estima que o número de habitantes de lá pode variar entre 15 e 25 mil — ou 21% a 35% da quantidade total atribuída ao Jangurussu, bairro mais populoso de Fortaleza com 70.651 habitantes.
Ainda que a demanda por um novo bairro possa parecer singular, Fortaleza já passou por mudanças do tipo recentemente. A Capital, por exemplo, “ganhou” o bairro Rachel de Queiroz em 2023.
Neste caso, no entanto, o que ocorreu foi uma mudança de nome do antigo Dendê, aprovada na Câmara de Fortaleza. Além disso, a demanda também não partiu propriamente dos moradores do local, mas foi acatada por eles.
Como ressalta o professor José Borzacchiello da Silva, um processo do tipo também passa pelo “jogo político”, além da sensibilização de agentes externos: “Tem que mobilizar associações, um vereador ou mais, que leve essa proposta para criar e reconhecer o bairro”.
O que diz a lei
O Verso buscou a Câmara de Fortaleza para entender quais as possibilidades e passos para um território se tornar um bairro na Capital. Segundo a Casa Legislativa, as regras para tanto estão no Código da Cidade.
Pelo artigo 521 da lei, “a denominação oficial de bairros será dada através de decreto legislativo, cuja iniciativa é privativa da Câmara de Fortaleza”.
“Para isso, o decreto deverá ser protocolado no Departamento Legislativo da CMFor, juntamente com croqui de localização elaborado pela Secretaria Municipal de Urbanismo e Meio Ambiente (SEUMA)”, segue.

Já o artigo 522, que trata sobre a nomeação de bairros e outros espaços públicos, também orienta: “A instituição de limites de novos bairrosocorrerá, prioritariamente, considerando os limites dos setores censitários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) da área”.
Finalmente, conforme a nota da casa legislativa, o artigo 523 diz que projetos que visem alterar denominação oficial de bairro devem ser justificados por audiência prévia na Câmara “para manifestação dos munícipes ou através de autorização por escrito, no mínimo, do 2/3 da população diretamente interessada”
O mesmo artigo acrescenta que, “quando se tratar de interesse específico no âmbito do bairro ou distrito, a manifestação popular deverá ser tomada por no mínimo 5% (cinco por cento) dos eleitores inscritos ali domiciliados”.
