52% dos autistas no CE são crianças ou adolescentes que vivem desafio de ter assistência e dignidade

A divulgação dos dados do Censo atualizam o cenário do TEA no Ceará e ajuda a garantir políticas públicas de inclusão
“Trocaria todo salário do mundo para que meu filho não fosse autista e não ter que conviver com o preconceito”. Esse é o relato de Roniele Lima, 35, mãe de Lorenzo Levi, 7 anos. O menino é um das 66 mil pessoas, entre crianças e adolescentes, com diagnóstico de autismo no Ceará e, assim como muitos outros, enfrentam junto às suas famílias desafios relacionados à assistência e à dignidade.
Quando uma família recebe o diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista (TEA), inicia ali a luta pelo desenvolvimento e por questões como enfrentamento ao preconceito, bullying, apoio na saúde e educação.
O Ceará tem 126,5 mil pessoas autistas e 52,78% desse total são justamente pessoas menores de 18 anos, ou seja, crianças e adolescentes. Em termos percentuais, o Estado tem a terceira maior porcentagem (1,4%) do país, atrás do Acre (1,6%) e do Amapá (1,5%).
Os dados foram apresentados pelo Censo Demográfico do IBGE de 2022, divulgado na última sexta-feira (22). Foi a primeira vez que o recenseamento acrescentou um tópico sobre laudo de TEA.
A inclusão do quesito sobre a presença dos dados relacionados ao autismo no Censo Demográfico foi determinada pela Lei n.º 13.861, de 18.07.2019, que alterou a Lei n.º 7.853, de 24.10.1989, para “incluir as especificidades inerentes ao transtorno do espectro autista – TEA, nos censos demográficos”. O TEA, conforme definição da OMS, é caracterizado por:
- “déficits persistentes na habilidade de iniciar e manter interações sociais e comunicação social recíprocas, e por uma gama de padrões de comportamento, interesses ou atividades restritos, repetitivos e inflexíveis, que são claramente atípicos ou excessivos para a idade e o contexto sociocultural do indivíduo”.
E esses dados refletem pessoas como Lorenzo, que está na faixa etária da estatística como maior número absoluto. São 23.486 crianças de 5 a 9 anos diagnosticadas com TEA, frente às 17.790 de 0 a 4 anos com o mesmo diagnóstico.
SINAIS DE ALERTA
Lorenzo teve os primeiros desenvolvimentos na infância no tempo considerado normal. Andou, engatinhou e falou palavras como ‘mamãe’ e ‘papai’. No entanto, aos 1 ano e 8 meses, ele parou de falar e começou a apresentar sinais de irritabilidade. Foi então que a mãe começou a ficar atenta.

O menino teve o primeiro contato com uma fonoaudióloga, que orientou Roniele a procurar atendimento com um neuropediatra. Após os exames, Lorenzo recebeu o diagnóstico de TEA aos 3 anos. Ali começava a luta da mãe em busca de tratamento especializado. Ele entrou na fila do SUS e começou as terapias em 2024.
“Nesse período, foi bastante difícil porque sem acompanhamento não tinha como tirar dúvidas. Eu pesquisava tudo na Internet e perguntava a conhecidos, mas cada criança é diferente. Então, eu me adaptei para que meu filho pudesse melhorar”, explica.
Esses desafios também são partilhados pela advogada da saúde Liana Maia, 39. Ela e o marido Fábio já eram pais de Letícia quando planejaram a segunda gestação. Fábio Filho nasceu a termo, ou seja, no período considerado normal de uma gravidez.
Os primeiros sinais atípicos surgiram quando ele tinha apenas nove meses de vida. Os pais chamavam o bebê pelo nome e ele não olhava, além de não interagir com outras crianças, apenas com a irmã.

Liana e o esposo já tinham um sobrinho diagnosticado com autismo, então os dois resolveram procurar ajuda médica. Fábio recebeu o laudo de TEA aos 1 ano e 4 meses. Foi esse diagnóstico precoce que ajudou o desenvolvimento de Fábio.
Autista de suporte nível 3, o menino frequenta a creche, brinca com a irmã Letícia e a mais nova Liz, vai à piscina do prédio e realiza outras atividades comuns da infância.
“Quando recebi o diagnóstico, eu já sabia, mas confesso que tive um sentimento de luto. Fiquei arrasada, chorei muito, mas tive o apoio do meu esposo e da minha família. Sem esse diagnóstico precoce, meu filho estaria bem pior”, comenta.
As investigações sobre o autismo de Lorenzo e Fábio foram iniciadas ainda na primeira infância, graças ao conhecimento das mães. A cada mês de vida, a criança deve atingir os marcos de desenvolvimento para cada fase estabelecidos pela Sociedade Brasileira de Pediatria.
Os atrasos ou perda de habilidades são os principais avisos de um desvio no crescimento típico da criança. Por isso, os pediatras são peças fundamentais para essa percepção.
Caso haja alguma dúvida, o neurologista pediátrico entra em ação para avaliar as funções cognitivas e investigar contextos familiares e bases genéticas. Esse processo pode – ou não – ser realizado em conjunto com um profissional da psicologia.
A psicóloga Vanessa Nascimento defende que a identificação precoce faz uma diferença substancial. “Quanto mais cedo, mais favoráveis as intervenções, porque o cérebro ainda está em processo de regeneração. Então, os resultados serão melhores”, afirma.
Um estudo da Universidade Federal do Ceará, em parceria com a Universidade Estadual do Ceará (Uece) e com o Instituto da Primeira Infância (IPREDE), busca uma forma de identificar o TEA ainda no teste do pezinho. O objetivo da pesquisa é verificar se é possível identificar proteínas específicas de pessoas que se encontram dentro do espectro autista no sangue e na urina de recém-nascidos.
Roniele e Liana também levaram em consideração o fato de já terem pessoas autistas na família para considerarem o possível diagnóstico. A pré-disposição genética é um dos elementos que explica o Transtorno do Espectro Autista (TEA), diz Vanessa. Quando há um soma de fatores, como explica a neuropediatra Raquel Diógenes, as chances podem ser ainda maiores.
“Por exemplo, hoje em dia, as crianças prematuras têm mais chances de sobrevivência devido a uma melhor qualidade de assistência no período neonatal. A prematuridade é um fator de risco ambiental que somado aos fatores genéticos podem contribuir para o TEA”, afirma.
Outros fatores estão ligados à avaliação clínica, conforme a médica, são:
- Mais informação sobre o autismo atualmente;
- Avanço na especialização dos profissionais;
- Mudança nos critérios de diagnóstico;
- Fatores ambientais.
Além disso, existem estudos que consideram o aumento da idade na concepção um agente influenciador. “Cada vez mais as pessoas estão tendo filhos mais tarde e isso também é um fator de risco que é estudado”, pondera Raquel.
A VIDA APÓS O DIAGNÓSTICO
Para Roniele Lima, a confirmação do TEA trouxe um peso maior no ambiente familiar. Ela conta que vive separada do pai de Lorenzo e de Laura Alice, e que, por isso, acaba ficando com o cuidado integral dos filhos. Sem carteira assinada, ela trabalha informalmente próximo de casa para ter tempo de levá-los à escola e aos médicos.
Lorenzo faz acompanhamento com terapeuta ocupacional, psicólogo e psicopedagogo desde setembro do ano passado e deverá ter alta em julho, como explica a mãe. A maior dificuldade é o atendimento com um neurologista. O menino está na lista de espera há pelo menos quatro anos, mas sem sucesso.
Raquel Diógenes explica que a atuação do neurologista pediátrico vai além do laudo do TEA. É esse profissional que acompanha o desenvolvimento da criança e do adolescente, promovendo intervenções de forma individualizada. Sem essa supervisão detalhada, a criança pode ter seu progresso impactado.
“Não basta só a primeira avaliação. O correto é que a criança tenha um acompanhamento com a frequência que depende da necessidade dela”, diz.
Apesar dessa dificuldade, o tratamento terapêutico ajudou Lorenzo a evoluir. Hoje, ele estuda numa escola pública e consegue conversar. “Ele mantém um diálogo de uma certa forma, mas ainda com bastante dificuldade. Comparado ao que era antes, ele tá bem melhor”, diz.

“As pessoas só sabem julgar, dizer que é fonte de renda, mas ninguém vai saber como é cuidar de uma criança autista”Roniele Lima
mãe atípica
Já Liana conta que chegou a vender um carro para poder pagar o tratamento particular do filho. A partir do contato com outras mães e percebendo na pele as dificuldades desse processo, resolveu voltar a advogar. Ela se especializou em direito da saúde, com foco nas ações de autismo.
A primeira ação na área foi a do filho Fábio. Após entrar na justiça, ela conseguiu que o tratamento multidisciplinar fosse fornecido integralmente por uma cooperativa de saúde particular do Ceará.
Fábio é acompanhado por uma equipe de neuropediatria, psicoterapia, psicopedagogia, acompanhamento terapêutico, terapia nutricional e fonoaudiologia. Há pouco menos de um ano, ele começou a tomar o canabidiol.
“Eu não faço um trabalho só de advogada, eu acolho as mães que chegam até mim para conversar. A maioria está desesperada, porque os filhos não evoluem, as clínicas estão lotadas ou estão sendo discriminados na escola”, diz.

Apesar de toda a luta, Liana e a família buscam desenvolver Fábio para que ele possa viver em sociedade. Apesar de ser autista não verbal, ela afirma que o filho se comunica bem graças a um aplicativo. “Hoje eu saio com meu filho para todo canto, porque eu acredito que ele tem que circular. Ele participa das festinhas da escola e vai para aniversários”, explica.
“Eu nunca perco a esperança que meu filho é pode ser o que ele quiser, mas eu também tenho uma noção que pode ser que ele fique a vida inteira aqui comigo”Liana Maia
advogada e mãe atípica
POLÍTICAS PÚBLICAS
A divulgação dos dados do Censo atualizam o cenário do TEA no Ceará e ajuda a garantir políticas públicas de inclusão. Para a neuropediatra Raquel Diógenes, é preciso alinhar essas informações com a capacitação de profissionais e combate ao preconceito.
“Com esses números, fica mais difícil de simplesmente ignorar essa população, como às vezes acabava sendo feito. Isso traz mais argumentos e recursos para que nós, profissionais, possamos cobrar por políticas públicas de inclusão”, reitera.
A população com TEA no Ceará é amparada pelo Estatuto da Pessoa com Transtorno do Espectro Autista, sancionado pelo governador Elmano de Freitas através da Lei n.º 18.642. O documento garante, promove e protege os diretos e liberdades das pessoas autistas no Estado.
Em nota enviada ao Diário do Nordeste, a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) informa que, na rede pública estadual, há oito policlínicas regionais equipadas com Centro Especializado em Reabilitação (CER). Esses equipamentos são pontos de atenção especializada em reabilitação intelectual habilitadas pelo Ministério da Saúde.
Somado a isso, dois hospitais de alta complexidade possuem serviço multidisciplinar de atendimento a crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA). O acesso aos serviços se dá por meio de encaminhamentos da Central de Regulação do Estado, diz a nota.
Já na rede hospitalar, o Núcleo de Atenção à Infância e Adolescência (Naia) do Hospital de Saúde Mental (HSM) atende cerca de 80 crianças e adolescentes, entre quatro e dezesseis anos, diagnosticados com TEA. O equipamento é composto por equipes multiprofissionais, formada por psiquiatras, psicólogos, residentes em Psiquiatria, assistente social e pediatra.
Neste mês de abril, o Governo do Estado lançou o programa Ceará TEAcolhe, que oferece atendimento psicossocial para cuidadores de pessoas autistas, encaminhamentos à rede socioassistencial do Estado e garante acesso à medicação com prescrição médica.
Segundo o Censo, só em Fortaleza, são 43.615 pessoas diagnosticadas com TEA, sendo 18.234 crianças e adolescentes. A cidade é a que apresenta o maior número absoluto, seguida de Caucaia (5.625) e Juazeiro do Norte (4.049).
No caso de crianças de até três anos, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Fortaleza destaca que os postos de saúde podem identificar, precocemente, os sinais de alerta para transtornos no desenvolvimento. Além disso, outros dois espaços da capital são voltados para esse público:
- 22 unidades dos Núcleos de Desenvolvimento Infantil (NDI), que promovem a detecção precoce de possíveis déficits cognitivos;
- 3 Centros de Atenção Psicossocial Infantil (Capsi), destinados para crianças e adolescentes de até 17 anos, 11 meses e 29 dias, acolhem pacientes com transtornos no desenvolvimento quando há quadro de sofrimento mental associado.
Uma das promessas de campanha do prefeito Evandro Leitão foi a criação do Espaço Girassol, um serviço que promete atendimento multidisciplinar para pessoas com transtorno do espectro autista (TEA) e Síndrome de Down e acolhimento de familiares.
Em abril deste ano, o prefeito disse ao Diário do Nordeste que as duas primeiras unidades do projeto serão instaladas até junho deste ano. A época, o gestor afirmou que a Prefeitura de Fortaleza está adaptando um prédio na Avenida João Pessoa para instalar o equipamento público.
A Secretaria de Saúde informou, em nota, que a inauguração do Centro de Diagnóstico do Espaço Girassol, que atenderá crianças e adolescentes de 3 a 16 anos e 11 meses, está prevista para o segundo semestre de 2025. “A SMS está trabalhando de forma intersetorial para a implantação de um núcleo Girassol por Coordenadoria Regional de Saúde nos próximos quatro anos”, finaliza a nota.