Inteligência Artificial muda setor de transportes com análises de trânsito e até previsão de pedidos

A Inteligência Artificial (IA) veio para ficar. Embora seja mais perceptível em vídeos e memes na internet, ela vem provocando uma revolução em ambientes organizacionais de diversas áreas, no setor público e no privado, ao permitir o processamento rápido de um grande volume de dados. Como resultado, processos são otimizados e, perdas, reduzidas.
Um dos setores que mais vêm ampliando esse uso é o de logística e transportes. Para além do desenho de melhores rotas, já comumente utilizado por aplicativos como o Waze, a IA pode contribuir para o planejamento de melhores infraestruturas viárias, implementação de novos sistemas e até previsão do comportamento de clientes usando aprendizado de máquina e geotecnologias.
Para entender como o recurso já é empregado e que perspectivas existem para sua ampliação no Brasil, o Diário do Nordeste conversou com especialistas na área de Engenharia de Transportes, Mobilidade Urbana e Supply Chain, esta última focada na cadeia de suprimentos envolvida da produção à entrega de um produto ou serviço.
Juntas, elas são responsáveis pelo transporte, armazenagem e distribuição de cargas e pela mobilidade humana, além de empregarem cerca de 2,7 milhões de trabalhadores.
Apesar desse volume, o país ainda tem grandes desafios. Segundo o Banco Mundial, uma logística eficiente e uma infraestrutura robusta são fatores-chave para o crescimento econômico e a competitividade de um país.
Porém, no último Índice de Desempenho Logístico (LPI), de 2023, o Brasil ficou na 51ª posição entre os 139 países analisados, atrás de nações como Luxemburgo, Vietnã e Arábia Saudita. O levantamento mede a capacidade dos países em transportar mercadorias de forma rápida e segura através das fronteiras.
Ainda conforme o LPI 2023, a digitalização de ponta a ponta da cadeia de abastecimento, especialmente em economias emergentes, pode permitir que elas reduzam atrasos nos portos em até 70%, em comparação com países desenvolvidos.
Frederico Rodrigues, doutor em Engenharia de Transportes, membro do Núcleo de Infraestrutura do Observatório Nacional da Segurança Viária e sócio-fundador do Grupo ImTraff, ressalta que o Brasil é um dos países que mais utiliza IAS generativas (que criam textos, imagens e até vídeos), mas ainda de forma “amadora”.
Mundo afora, além dos testes com veículos autônomos, ele cita até mesmo a redução de mortes em hospitais que passaram a utilizar a ferramenta para garantir a melhor roteirização do trajeto de ambulâncias para atendimentos de emergência.
A engenheira Gisela Mangabeira de Sousa, especialista nas áreas de Logística e Inovação e consultora na GMC Solutions, percebe que o Brasil tem um grande potencial porque a frota nacional é “muito sensorizada” com geolocalização em tempo real para evitar roubos de veículos e cargas.
Isso pode facilitar as análises de IA, que necessitam de um grande volume de dados para dar respostas mais assertivas. Assim, a ferramenta pode estar associada tanto ao monitoramento direto do veículo quanto ao planejamento administrativo do setor – especialmente quando se fala em manutenção preventiva.
“Com a detecção de falhas nos sensores, você evita ter um gasto grande com a troca de uma peça que chegaria a quebrar. Então, você faz uma manutenção muito mais simples e evita que o veículo fique parado por muito tempo, o que traz ganhos financeiros. Você tem o veículo rodando muito mais”, detalha.
Assim, há muito mais precisão em qual veículo deve ser mandado para a oficina e evita gastos com outras unidades que nem precisariam passar pela revisão, naquele momento. “Você agiliza o tempo da própria equipe de manutenção. Essa é uma frente de uso que está crescendo bastante”, cita.

Outro uso da IA está associado à segurança viária. Alguns sensores podem visualizar o rosto dos motoristas e, a partir da análise de imagens, gerar um alerta caso eles deem demonstrativos de que podem dormir.
Segundo ela, muitas transportadoras já aplicam esse modelo em frotas que realizam viagens mais longas e, portanto, podem apresentar maior risco para algum tipo de sinistro nas estradas.
Um estudo da startup Motora.ai testou o modelo de IA generativa para detectar uso de celular, bocejos, distrações e até mesmo o ato de fumar dentro do veículo. A pesquisa apresentou o seguinte nível de precisão:
- 98,9% para detecção de bocejos, um indicador de fadiga ao volante;
- 95,7% para uso do celular, um fator de distração no trânsito;
- 91,7% para reconhecer motoristas desatentos, garantindo maior controle sobre riscos de colisão.
Na prática, a inovação proporciona redução de custos com acidentes, manutenções inesperadas, multas e, principalmente, traz mais segurança aos colaboradores.
Estoques móveis
Um dos usos mais avançados da IA no setor, aponta Gisela, vem da China. Por lá, a ferramenta tem permitido a predição de demanda a partir de dados dos consumidores, em plataformas de compra, e a criação de um “estoque móvel”.
Funciona dessa forma: algumas empresas começaram a usar softwares para prever a demanda por produtos em grandes centros urbanos, onde há um alto volume de carga.
A IA, ao analisar um grande volume de dados (big data), consegue identificar padrões e prever quais itens provavelmente serão vendidos em uma determinada região, mesmo antes de os pedidos serem feitos.
Com base nessas previsões, em vez de esperar que todos os produtos dos clientes esgotem, mas ainda sem um pedido formal, a empresa distribuidora carrega determinada quantidade de itens em caminhões
O caminhão já inicia sua rota com a carga “pré-carregada”. Enquanto o veículo está em movimento, os pedidos começam a ser feitos. Como o veículo já está a caminho e, muitas vezes, já perto da área do cliente, as entregas podem ser realizadas em prazos extremamente curtos: até mesmo minutos.
Embora chame atenção, a especialista ressalta que essa metodologia é “extremamente difícil” e teria um custo muito alto de operação sem a IA.

“É a IA que fornece a qualidade de informação e a assertividade nas análises necessárias para viabilizar esse tipo de solução, permitindo que a empresa decida o que carregar e para onde enviar antes mesmo da compra”, sugere.
O benefício é a entrega extremamente rápida, que atende a uma crescente demanda por agilidade no recebimento de produtos porque, especialmente no mundo pós-pandemia da Covid-19, o tempo é considerado um bem precioso.
Eu não acho que vai demorar algo como 50 anos – talvez seja menos tempo – pra gente conseguir já ver um uso maior de veículos autônomos. Gisela Mangabeira
Especialista em Supply Chain
As ruas da China também já possuem o tráfego de caminhões sem cabine e sem motorista, orientados apenas pelas ordens da Inteligência Artificial. Os testes vêm sendo feitos para trajetos curtos e com baixo volume, mas Gisela vê perspectivas de crescimento dos veículos autônomos, nas próximas décadas.
“Dentro de um de uma fábrica, onde eu tenho um ambiente mais controlado, muito provavelmente vai se usar mais rápido. Nos ambientes urbanos muito complexos, acho que ainda vai demorar um pouco mais”, entende.
Avaliando exemplos desse tipo, Frederico Rodrigues, da ImTraff, considera que o Brasil ainda tem muitas lacunas para preencher na área. “A IA está acontecendo, e algumas empresas estão na vanguarda. A maioria ainda está em processos lentos, mas não tem jeito de não acontecer: vai acontecer”.
Soluções para cidades
A IA também vem sendo aplicada na gestão pública de mobilidade urbana, que tem impactos diários sobre a coletividade. Em Fortaleza, quarta cidade mais populosa do país, a Prefeitura precisa gerenciar uma frota de quase 1,3 milhão de veículos, segundo a Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran), vinculada ao Ministério dos Transportes.
O coordenador especial da Secretaria Municipal da Conservação e Serviços Públicos (SCSP), Victor Macêdo, afirma que a ferramenta já é utilizada para tratar dados e informações disponibilizadas por outras iniciativas, a fim de qualificar os serviços.
Para o monitoramento e gestão do trânsito, a IA realiza análise de vídeos para melhorar a segurança e o planejamento. Isso inclui:
- Videomonitoramento: é empregada para processar informações de centenas ou milhares de câmeras espalhadas pela cidade;
- Análise de Vídeo: a IA realiza análises de imagens para extrair dados e gerar alertas automáticos;
- Identificação de infrações: é capaz, por exemplo, de detectar motociclistas em ciclofaixas e perceber quais estruturas são mais invadidas;
- Projeto Parada Segura: câmeras em paradas de ônibus são analisadas para identificar movimentos suspeitos, como apontar armas, braços levantados ou uso de capacete; se um movimento estranho é detectado, a IA gera um alerta automático para a central de comando e controle.
“Quando um evento suspeito é identificado, a imagem salta na tela do agente que está monitorando. Mas é importante notar que a IA não substitui o olho humano: é o agente que faz a triagem para verificar se é um alerta verdadeiro ou um falso positivo (por exemplo, confundir um boné com um capacete). Ela exige cautela e acompanhamento para validar os alertas”, diferencia.

A ferramenta também é aplicada para avaliar as informações do Papo de Pedal, programa que realiza conversas com ciclistas nas ruas e ciclovias, em horários de pico, para captar demandas desses usuários.
Nesse caso, a IA compila, transcreve e organiza áudios de entrevistas gravadas, identificando palavras e temas que apareceram com mais frequência. Como exemplo, ele cita a porcentagem de pessoas que mencionaram a necessidade de melhorar a iluminação em determinado ponto, ou se mulheres reclamam mais de um determinado aspecto.
“Essa aplicação da IA permite uma forma ágil e estruturada de consultar os relatos dos ciclistas, o que seria impraticável com a análise manual de horas de áudios gravados”, explica Macêdo.
A Secretaria também estuda o uso avançado da IA para uma Análise Preditiva de Acidentes: ela cruzaria diversos dados existentes, como volume de tráfego, tipo de via, extensão, velocidade, histórico de acidentes e fatores climáticos (como chuva), para antecipar possíveis ocorrências de sinistros, favorecendo abordagens preventivas.
Segundo Victor, o uso da tecnologia para análise de sinistros de trânsito e coleta de dados de mobilidade é uma tendência forte em nível global, já tendo trocado experiências com cidades como Salvador, Belo Horizonte, São Paulo e Bogotá.
Apesar de ser novidade no dia a dia de muitas empresas e gestões, a IA se tornou pauta no Congresso Nacional desde 2023. O Projeto de Lei 2.338/2023estabelece normas gerais de caráter nacional para o uso responsável de inteligência artificial no Brasil.
A matéria apresenta conceitos importantes, como quem são os agentes de IA e suas responsabilidades, a categorização dos sistemas de IA e práticas de governança, além de estabelecer o Sistema Nacional de Regulação e Governança de Inteligência Artificial.
Os principais objetivos do projeto são proteger direitos fundamentais, estimular a inovação responsável e garantir a implementação de sistemas seguros e confiáveis.
Na Agenda Institucional Transporte e Logística 2025, a CNT considera que a criação das regras para o uso de IA no Brasil “é fundamental para evitar que a tecnologia seja usada de forma inadequada ou que possa ser uma ferramenta que gere concorrências desleais ou uso indevidos de imagens, nomes ou dados”.
A Confederação entende que o transporte e a logística estão integrados aos avanços tecnológicos que podem tornar a operação de transporte “mais segura, eficiente e eficaz”, trazendo benefícios aos operadores e aos usuários do transporte.
Por isso, destaca que o Sistema Transporte apoia uma regulamentação que traga mais segurança ao uso da IA em todo o território nacional, desde que a legislação “proteja, de forma adequada”, o uso de imagens, dados e informações do transporte e da logística, resguardando usuários e operadores.
Em março deste ano, a matéria foi remetida à Câmara dos Deputados após aprovação do Senado Federal e aguarda tramitação.